As Nações Unidas nasceram<br>há 70 anos

Gustavo Carneiro

A Or­ga­ni­zação das Na­ções Unidas (ONU) en­trou ofi­ci­al­mente em fun­ções a 24 de Ou­tubro de 1945, após a ra­ti­fi­cação da sua Carta pelos cinco mem­bros per­ma­nentes do Con­selho de Se­gu­rança (China, Es­tados Unidos da Amé­rica, França, Reino Unido e União So­vié­tica) e pela mai­oria dos res­tantes 46 países subs­cri­tores. Foi pre­ci­sa­mente com re­pre­sen­ta­ções destes 51 es­tados que se re­a­li­zaram, em Lon­dres, as pri­meiras reu­niões da As­sem­bleia-Geral e do Con­selho de Se­gu­rança. Hoje, a ONU está se­diada em Nova Iorque e tem 193 es­tados-mem­bros.

A cons­ti­tuição das Na­ções Unidas – com os con­tornos que acabou por as­sumir co­meçou a ga­nhar forma nos úl­timos meses da guerra contra o nazi-fas­cismo, a partir da ali­ança que se formou entre a União So­vié­tica (que desde 1941 com­batia pra­ti­ca­mente só os exér­citos hi­tle­ri­anos e que foi a prin­cipal obreira da vi­tória) e os EUA e a Grã-Bre­tanha, que em Junho de 1944 abriram fi­nal­mente a pro­me­tida Se­gunda Frente. A cons­ti­tuição da ONU con­cre­tizou a «grande ali­ança an­ti­fas­cista» que pôs fim à Se­gunda Guerra Mun­dial.

Aquando da adopção da Carta das Na­ções Unidas, em Junho de 1945, as forças hi­tle­ri­anas e os seus ali­ados eu­ro­peus ti­nham já sido der­ro­tados, com a União So­vié­tica, os co­mu­nistas e os mo­vi­mentos de re­sis­tência po­pular a as­sumir o papel pre­pon­de­rante na vi­tória; no Ex­tremo Ori­ente, os EUA ainda com­ba­tiam o mi­li­ta­rismo ja­ponês e de­se­javam o apoio so­vié­tico para ace­lerar a ren­dição. Num lado como noutro, os povos li­ber­tados lan­çavam-se à cons­trução de países so­be­ranos e pro­gres­sistas e os ideais do so­ci­a­lismo co­nhe­ciam um pres­tígio e um vigor nunca vistos.

É pre­ci­sa­mente esta cor­re­lação de forças que ex­plica o ca­rácter avan­çado da Carta das Na­ções Unidas e a subs­crição por parte das prin­ci­pais po­tên­cias co­lo­ni­a­listas e im­pe­ri­a­listas do pós-guerra, com os EUA à ca­beça, de prin­cí­pios como a pro­moção do pro­gresso so­cial, a igual­dade entre as na­ções (sejam elas grandes ou pe­quenas), a sal­va­guarda da paz e da se­gu­rança in­ter­na­ci­onal, o de­sen­vol­vi­mento de re­la­ções de ami­zade entre es­tados e o res­peito pela au­to­de­ter­mi­nação dos povos.

Mar­gi­na­li­zação e ins­tru­men­ta­li­zação

O status quo que ditou a adopção da Carta das Na­ções Unidas foi de curta du­ração e o equi­lí­brio que, não sem ten­sões, a URSS e os EUA vi­nham man­tendo desde os úl­timos meses da guerra ra­pi­da­mente deu lugar à guerra fria, inau­gu­rada pelo pro­vo­cador dis­curso da «Cor­tina de Ferro» pro­fe­rido por Chur­chill em Março de 1946. Sus­ten­tados no po­derio eco­nó­mico com que saíram do con­flito (que não afectou ter­ri­tório norte-ame­ri­cano) e no mo­no­pólio da arma ató­mica, os EUA mos­traram-se em­pe­nhados em de­se­qui­li­brar os pratos da ba­lança a seu favor, pro­cu­rando dessa forma travar o im­pe­tuoso avanço do so­ci­a­lismo e o pro­cesso de eman­ci­pação dos povos. Re­cor­rendo, para tal, à mar­gi­na­li­zação e ins­tru­men­ta­li­zação da ONU.

Com a cri­ação da NATO, em Abril de 1949, os EUA re­ti­raram de facto às Na­ções Unidas – e par­ti­cu­lar­mente ao Con­selho de Se­gu­rança (onde es­tava re­pre­sen­tada a União So­vié­tica, com poder de veto) – a «prin­cipal res­pon­sa­bi­li­dade na ma­nu­tenção da paz e da se­gu­rança in­ter­na­ci­o­nais», que a Carta lhe atri­buía, e atribui. Ao invés de um sis­tema de se­gu­rança co­lec­tiva des­ti­nado a sal­va­guardar a paz, para que apon­tava a Carta das Na­ções Unidas, as ca­madas di­ri­gentes dos EUA in­sis­tiam numa po­lí­tica agres­siva ba­seada num bloco po­lí­tico-mi­litar que ser­visse os seus in­te­resses eco­nó­micos e geo-es­tra­té­gicos.

A não acei­tação, até 1971, da Re­pú­blica Po­pular da China no Con­selho de Se­gu­rança e a agressão mi­litar dos EUA à Co­reia, re­a­li­zada sob a égide da ONU (apro­vei­tando-se da au­sência do re­pre­sen­tante so­vié­tico, que boi­co­tara as reu­niões do Con­selho de Se­gu­rança em pro­testo pre­ci­sa­mente pela ex­clusão da China) mar­caram os pri­meiros anos da ONU e per­ma­necem como pá­ginas ne­gras da sua his­tória. O per­ma­nente des­res­peito de Is­rael pelas múl­ti­plas re­so­lu­ções da As­sem­bleia-geral con­de­na­tó­rias da ocu­pação dos ter­ri­tó­rios pa­les­ti­ni­anos, com o apoio cons­tante dos EUA, entre ou­tros casos, con­tri­buem para minar a au­to­ri­dade e o pres­tígio da ONU.

Esta ins­tru­men­ta­li­zação agravou-se com o de­sa­pa­re­ci­mento da União So­vié­tica e do campo so­ci­a­lista, no final do sé­culo XX: em mais do que uma oca­sião, a ONU deu co­ber­tura a agres­sões mi­li­tares e à chan­tagem po­lí­tica e di­plo­má­tica sobre es­tados so­be­ranos, para servir os in­te­resses do im­pe­ri­a­lismo; nou­tros casos, deu provas de uma cons­tran­ge­dora in­ca­pa­ci­dade, fa­vo­re­cendo esses mesmos in­te­resses...

Num mo­mento mar­cado por graves ame­aças à paz, é fun­da­mental res­gatar os prin­cí­pios fun­da­dores da ONU, que per­ma­necem ins­critos na sua Carta. O alar­ga­mento da luta pela paz, pela so­be­rania e por trans­for­ma­ções de­mo­crá­ticas e pro­gres­sistas é o ca­minho mais se­guro para al­cançar tão am­bi­cioso ob­jec­tivo. Como a his­tória mostra, tudo de­pende da cor­re­lação de forças exis­tente.




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